terça-feira, 26 de maio de 2015

Participação direta: um caminho para a (re)legitimação do governo brasileiro

*Por Tatiana Bozza

Cidadania pode ser compreendida sob diversos aspectos, especialmente o moral (tradição grega) e o legal (tradição romana), visões que são detalhadas por Janet e Robert Denhardt em seu livro sobre o Novo Serviço Público (2003).
Sob o ponto de vista legal, a cidadania seria representada pela garantia de determinados direitos, especialmente o de propriedade, e exercida por meio do voto. Os representantes eleitos, então, teriam a responsabilidade de garantir os meios (leis) para o exercício desses direitos. A ordem jurídica estabelecida pelos representantes eleitos garante o exercício de direitos, porém sob a condição de cumprimento de uma série de deveres que garantem a manutenção da segurança jurídica dos cidadãos.
Sob o ponto de vista moral, o envolvimento dos cidadãos na vida política, antes de se tratar de uma questão de direitos e deveres, é algo que os realiza plenamente em sua humanidade, pois o homem é um ser ativo, social e moral. Os cidadãos tomam decisões em conjunto e respeitam a autoridade das decisões tomadas, sendo que os governos existem para facilitar esse envolvimento cidadão e ajudá-los a colocar essas decisões em prática (ou a realizar o bem comum). É neste ponto que parecer ter início a crise política em que está mergulhado nosso país.
Os cidadãos estão interessados no exercício da cidadania de maneira direta, no envolvimento e engajamento nas decisões substantivas da sociedade. Porém, a democracia brasileira tem sido exercida muito mais com a participação indireta dos cidadãos, ou seja, a participação tem se restringindo à eleição dos representantes, algo limitador da cidadania, conforme aborda Nancy Roberts em seu excelente texto sobre a era da participação direta (2004).  Além disso, a maneira como o processo eleitoral vem sendo conduzido no Brasil tem gerado polarização de ideias e de grupos, simplificação de realidades complexas e desconfiança dos cidadãos em relação aos governantes.
A campanha da presidente da república reeleita foi pautada pela ideia de que a situação econômica do país passava por dificuldades advindas de uma crise internacional, que estaria acabando e, portanto, o país rumava à recuperação. O ajuste fiscal foi pregado como uma medida desnecessária, que seria adotada pelo principal adversária da então candidata e teria consequências catastróficas. Antes mesmo de tomar posse para seu segundo mandato, no entanto, ao anunciar os nomes da equipe econômica, ficou claro que o discurso era muito diferente da realidade enfrentada pela economia brasileira, foram então tomadas medidas para garantir o aumento da arrecadação (aumento de impostos) e corte de gastos, inclusive com restrição de direitos sociais e trabalhistas.
O povo se sentiu enganado, desrespeitado na sua decisão, o que é demonstrado pelos índices de rejeição do atual governo -  cerca de 44% da população brasileira considera o governo ruim ou péssimo, esse percentual era de 24% em dezembro do ano passado (Datafolha, 07/02/15). Esses dados são anteriores, e de certa forma mais expressivos do que os cerca de 2 milhões de pessoas que foram às ruas no último dia 15 de março. Porém, o governo demonstra-se incapaz de processar essa informação de maneira adequada, e, não apresentando uma resposta satisfatória, leva as pessoas às ruas, pois essa passou a ser a única forma de deixar clara a insatisfação. Ainda que as autoridades tentem desmerecer a mobilização popular, sob a alegação de que as pessoas que foram às ruas são apenas as inconformadas com a derrota nas urnas, e que não passam de oportunistas, se aproveitando da má situação econômica do país para “instituir o terceiro turno nas eleições”, é preciso olhar para os índices de reprovação do governo.
Outra questão, que também pode ser entendida como causa da insatisfação generalizada é a descoberta do esquema de corrupção da Petrobras, que talvez seja o maior que já aconteceu no país, ou pelo menos o maior já revelado. A revelação de esquemas de corrupção como esse levam ao descrédito em relação a toda a classe política e ao sistema político vigente. O nível de confiança das pessoas nos agentes políticos fica significativamente abalado quando um número grande de agentes, ligados a diversos partidos, aparece envolvido em esquemas de desvio de dinheiro público. As pessoas passam a desconfiar da motivação dos políticos quando eles parecem movidos exclusivamente por interesses particulares e não pelo bem comum, esvaziando as lideranças políticas, essenciais para a concretização da democracia, conforme observam os Denhardt (2003).
A população atribui ao governo a responsabilidade pela elevação dos índices de inflação, pelo baixo desempenho da economia (baixo crescimento) e pela ameaça de elevação do desemprego. Ou seja, está olhando para problemas que afetam a sociedade como um todo, e se mobilizando por interesses que ultrapassam seus interesses individuais e imediatos. Os cidadãos estão percebendo que, para além de cobrarem do governo a solução dos problemas, podem fazer parte dela. A realização do interesse público pode e deve ser compartilhada entre cidadão e governo.
Esse é o caso de inúmeros empreendedores sociais que atuam no Brasil, pessoas que implementam ideias inovadoras para a transformação da realidade social e ambiental. Alguns exemplos disso podem ser vistos no site www.ashoka.org.br, uma organização que atua no apoio a empreendedores sociais, integrando-os a uma rede de mundial para intercâmbio de metodologia. São iniciativas que buscam a melhoria das condições de vida das pessoas por meio de ações para, por exemplo, combater o racismo fortalecendo a auto-estima dos negros, lutar contra a falta de transparência no Brasil usando internet e tecnologia da informação, auxiliar pessoas com Síndrome de Down a serem auto-suficientes, introduzir pequenos produtores ao mercado de luxo divulgando os produtos típicos da culinária brasileira, etc
O interesse público perseguido pelos cidadãos articulados entre si e com os servidores públicos é a razão de ser dos governos democráticos e deve ser entendido não apenas como a soma dos interesses individuais, mas com a busca por valores coletivos, por objetivos nos quais há consenso. Nesse sentido, a resposta que se espera do governo para a crise atual ultrapassa a resolução de problemas pontuais, devendo se concentrar na melhoria do diálogo com a sociedade.
A realização do interesse público deve ser o objetivo central do governo e a sua definição, necessariamente, deve se participativa. Cabe ao governo, portanto, incentivar que os cidadãos desenvolvam um senso coletivo de interesse público, o qual deverá ser perseguido.
Assim, a saída para a crise política brasileira começa pela recuperação da credibilidade do governo, na elevação da sensação de que o governo legitimamente representa os cidadãos e está aberto para construir com os cidadãos, o que pode ser alcançado pela melhoria dos níveis de participação, de diversas formas. Os cidadãos precisam acreditar que o governo está agindo em resposta ao interesse público e, assim, trabalharem juntos para realizá-lo.
O governo precisa abrir canais de comunicação com os cidadãos. Com o nível de desenvolvimento tecnológico existente atualmente, pode-se diversificar as formas de democracia direta. Os cidadãos estão conectados por redes sociais e o acesso à informação acontece praticamente em tempo real. Em meio à crise de representatividade em que o país está inserido, aprimorar os mecanismos de manifestação de opiniões de forma direta, permitindo que a tomada de decisão seja feita de forma participativa, poderia ser um caminho.
Os meios existem, o uso da tecnologia permite que sejam feitas votações e debates envolvendo um número muito maior de participantes que os representantes eleitos, trazendo mais transparência para o processo de tomada de decisão. Já existem experiências nesse sentido, como é o caso do Demoex (www.demoex.org), na Suécia, um partido político cuja ideologia consiste especialmente na promoção da democracia direta. Os representantes eleitos desse partido apenas reproduzem nas casas legislativas os resultados das consultas que fazem em seu site a respeito das questões postas em votação.
Iniciativas semelhantes foram propostas no Brasil nas eleições de 2014. Em Santa Catarina, o candidato a Deputado Estadual Leonardo Secchi e, em São Paulo, o candidato a Deputado Federal Zé Gustavo fizeram campanhas chamando os cidadãos a serem codeputados. Todas as votações das quais participariam esses deputados seriam previamente discutidas com os codeputados por meio digital e as decisões consensuadas levadas às casas legislativas. Acima de tudo, mandatos compartilhados trariam horizontalidade ao processo representativo e propiciariam um processo de aprendizagem social, tornando os cidadãos cada vez mais aptos a participarem ativa e efetivamente da vida política. Porém, nenhum deles foi eleito.  
Seja qual for a solução a ser proposta pelo governo, uma coisa está clara: para as manifestações do dia 15 de março resta uma interpretação, a sociedade clama por participação, pelo exercício ativo da cidadania.

Referências:
DENHARDT, Janet. V. & DENHARDT, Robert. B. The new public service: serving rather than steering. New York: M. E. Sharpe, 2003.
ROBERTS, Nancy. Public Deliberation in an age of direct citizen participation. American Review of Public Administration. V. 34, n.4, p. 315-353, dec 2004.  


*Tatiana Bozza é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Especialista em Estudos Estratégicos da Administração Pública pela Fundação Escola de Governo - ENA e aluna especial na disciplina Coprodução do Bem Público, do Mestrado em Administração da Udesc/Esag.

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