*Por
Tatiana Bozza
Cidadania pode ser compreendida sob diversos aspectos,
especialmente o moral (tradição grega) e o legal (tradição romana), visões que
são detalhadas por Janet e Robert Denhardt em seu livro sobre o Novo Serviço
Público (2003).
Sob o ponto de vista legal, a cidadania seria representada
pela garantia de determinados direitos, especialmente o de propriedade, e
exercida por meio do voto. Os representantes eleitos, então, teriam a
responsabilidade de garantir os meios (leis) para o exercício desses direitos. A
ordem jurídica estabelecida pelos representantes eleitos garante o exercício de
direitos, porém sob a condição de cumprimento de uma série de deveres que
garantem a manutenção da segurança jurídica dos cidadãos.
Sob o ponto de vista moral, o envolvimento dos cidadãos na
vida política, antes de se tratar de uma questão de direitos e deveres, é algo
que os realiza plenamente em sua humanidade, pois o homem é um ser ativo,
social e moral. Os cidadãos tomam decisões em conjunto e respeitam a autoridade
das decisões tomadas, sendo que os governos existem para facilitar esse
envolvimento cidadão e ajudá-los a colocar essas decisões em prática (ou a
realizar o bem comum). É neste ponto que parecer ter início a crise política em
que está mergulhado nosso país.
Os cidadãos estão interessados no exercício da cidadania de
maneira direta, no envolvimento e engajamento nas decisões substantivas da
sociedade. Porém, a democracia brasileira tem sido exercida muito mais com a
participação indireta dos cidadãos, ou seja, a participação tem se restringindo
à eleição dos representantes, algo limitador da cidadania, conforme aborda
Nancy Roberts em seu excelente texto sobre a era da participação direta (2004).
Além disso, a maneira como o processo eleitoral vem sendo conduzido no
Brasil tem gerado polarização de ideias e de grupos, simplificação de
realidades complexas e desconfiança dos cidadãos em relação aos governantes.
A campanha da presidente da república reeleita foi pautada
pela ideia de que a situação econômica do país passava por dificuldades
advindas de uma crise internacional, que estaria acabando e, portanto, o país
rumava à recuperação. O ajuste fiscal foi pregado como uma medida
desnecessária, que seria adotada pelo principal adversária da então candidata e
teria consequências catastróficas. Antes mesmo de tomar posse para seu segundo
mandato, no entanto, ao anunciar os nomes da equipe econômica, ficou claro que
o discurso era muito diferente da realidade enfrentada pela economia
brasileira, foram então tomadas medidas para garantir o aumento da arrecadação
(aumento de impostos) e corte de gastos, inclusive com restrição de direitos
sociais e trabalhistas.
O povo se sentiu enganado, desrespeitado na sua decisão, o
que é demonstrado pelos índices de rejeição do atual governo - cerca de
44% da população brasileira considera o governo ruim ou péssimo, esse
percentual era de 24% em dezembro do ano passado (Datafolha, 07/02/15). Esses
dados são anteriores, e de certa forma mais expressivos do que os cerca de 2
milhões de pessoas que foram às ruas no último dia 15 de março. Porém, o
governo demonstra-se incapaz de processar essa informação de maneira adequada,
e, não apresentando uma resposta satisfatória, leva as pessoas às ruas, pois
essa passou a ser a única forma de deixar clara a insatisfação. Ainda que as
autoridades tentem desmerecer a mobilização popular, sob a alegação de que as
pessoas que foram às ruas são apenas as inconformadas com a derrota nas urnas, e
que não passam de oportunistas, se aproveitando da má situação econômica do
país para “instituir o terceiro turno nas eleições”, é preciso olhar para os
índices de reprovação do governo.
Outra questão, que também pode ser entendida como causa da
insatisfação generalizada é a descoberta do esquema de corrupção da Petrobras,
que talvez seja o maior que já aconteceu no país, ou pelo menos o maior já
revelado. A revelação de esquemas de corrupção como esse levam ao descrédito em
relação a toda a classe política e ao sistema político vigente. O nível de
confiança das pessoas nos agentes políticos fica significativamente abalado
quando um número grande de agentes, ligados a diversos partidos, aparece
envolvido em esquemas de desvio de dinheiro público. As pessoas passam a
desconfiar da motivação dos políticos quando eles parecem movidos
exclusivamente por interesses particulares e não pelo bem comum, esvaziando as
lideranças políticas, essenciais para a concretização da democracia, conforme
observam os Denhardt (2003).
A população atribui ao governo a responsabilidade pela
elevação dos índices de inflação, pelo baixo desempenho da economia (baixo
crescimento) e pela ameaça de elevação do desemprego. Ou seja, está olhando
para problemas que afetam a sociedade como um todo, e se mobilizando por
interesses que ultrapassam seus interesses individuais e imediatos. Os cidadãos
estão percebendo que, para além de cobrarem do governo a solução dos problemas,
podem fazer parte dela. A realização do interesse público pode e deve ser
compartilhada entre cidadão e governo.
Esse é o caso de inúmeros empreendedores sociais que atuam
no Brasil, pessoas que implementam ideias inovadoras para a transformação da
realidade social e ambiental. Alguns exemplos disso podem ser vistos no site www.ashoka.org.br,
uma organização que atua no apoio a empreendedores sociais, integrando-os a uma
rede de mundial para intercâmbio de metodologia.
São iniciativas que buscam a melhoria das condições de vida das pessoas por
meio de ações para, por exemplo, combater o racismo fortalecendo a auto-estima
dos negros, lutar contra a falta de transparência no Brasil usando internet e
tecnologia da informação, auxiliar pessoas com Síndrome de Down a serem
auto-suficientes, introduzir pequenos produtores ao mercado de luxo divulgando
os produtos típicos da culinária brasileira, etc
O interesse público perseguido pelos cidadãos articulados
entre si e com os servidores públicos é a razão de ser dos governos
democráticos e deve ser entendido não apenas como a soma dos interesses
individuais, mas com a busca por valores coletivos, por objetivos nos quais há
consenso. Nesse sentido, a resposta que se espera do governo para a crise atual
ultrapassa a resolução de problemas pontuais, devendo se concentrar na melhoria
do diálogo com a sociedade.
A realização do interesse público deve ser o objetivo
central do governo e a sua definição, necessariamente, deve se participativa.
Cabe ao governo, portanto, incentivar que os cidadãos desenvolvam um senso
coletivo de interesse público, o qual deverá ser perseguido.
Assim, a saída para a crise política brasileira começa pela
recuperação da credibilidade do governo, na elevação da sensação de que o
governo legitimamente representa os cidadãos e está aberto para construir com
os cidadãos, o que pode ser alcançado pela melhoria dos níveis de participação,
de diversas formas. Os cidadãos precisam acreditar que o governo está agindo em
resposta ao interesse público e, assim, trabalharem juntos para realizá-lo.
O governo precisa abrir canais de comunicação com os
cidadãos. Com o nível de desenvolvimento tecnológico existente atualmente,
pode-se diversificar as formas de democracia direta. Os cidadãos estão
conectados por redes sociais e o acesso à informação acontece praticamente em
tempo real. Em meio à crise de representatividade em que o país está inserido,
aprimorar os mecanismos de manifestação de opiniões de forma direta, permitindo
que a tomada de decisão seja feita de forma participativa, poderia ser um
caminho.
Os meios existem, o uso da tecnologia permite que sejam
feitas votações e debates envolvendo um número muito maior de participantes que
os representantes eleitos, trazendo mais transparência para o processo de
tomada de decisão. Já existem experiências nesse sentido, como é o caso do
Demoex (www.demoex.org),
na Suécia, um partido político cuja ideologia consiste especialmente na
promoção da democracia direta. Os representantes eleitos desse partido apenas
reproduzem nas casas legislativas os resultados das consultas que fazem em seu site
a respeito das questões postas em votação.
Iniciativas semelhantes foram propostas no Brasil nas
eleições de 2014. Em Santa Catarina, o candidato a Deputado Estadual Leonardo
Secchi e, em São Paulo, o candidato a Deputado Federal Zé Gustavo fizeram
campanhas chamando os cidadãos a serem codeputados. Todas as votações das quais
participariam esses deputados seriam previamente discutidas com os codeputados
por meio digital e as decisões consensuadas levadas às casas legislativas.
Acima de tudo, mandatos compartilhados trariam horizontalidade ao processo
representativo e propiciariam um processo de aprendizagem social, tornando os
cidadãos cada vez mais aptos a participarem ativa e efetivamente da vida
política. Porém, nenhum deles foi eleito.
Seja qual for a solução a ser proposta pelo governo, uma coisa
está clara: para as manifestações do dia 15 de março resta uma interpretação, a
sociedade clama por participação, pelo exercício ativo da cidadania.
Referências:
DENHARDT, Janet. V. & DENHARDT, Robert. B. The new public
service: serving rather than steering. New York: M. E. Sharpe, 2003.
ROBERTS, Nancy. Public Deliberation
in an age of direct citizen participation. American
Review of Public Administration. V. 34,
n.4, p. 315-353, dec 2004.
*Tatiana Bozza é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Especialista em Estudos Estratégicos da Administração Pública pela Fundação Escola de Governo - ENA e aluna especial na disciplina Coprodução do Bem Público, do Mestrado em Administração da Udesc/Esag.
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