Quantas vezes você já passou por um local onde
encontrou pelo menos um morador de rua? Talvez muitas. Dessas, quantas vezes
você sentiu medo, nojo e/ou indiferença? Talvez a maioria. Não, não é só você
que tem esses sentimentos. Trata-se de algo cultural, construído ao longo do
tempo e difundido para a maioria dos brasileiros. Não conseguimos compreender
as dores e necessidades dessas pessoas, e acaba sendo mais fácil julgar e se
manter alheio a esse universo paralelo. Generalizações como: “quem está na rua
é vagabundo”; “todos que moram na rua usam drogas e bebem”; “se um morador de
rua tiver a oportunidade de roubar ele o fará” – são mais que comuns em nossa
sociedade.
O quanto disso é verdade? O quanto nos blindamos de
preconceitos e achismos?
Vamos discutir em dois artigos alguns desses pontos
com o objetivo de gerar empatia e um novo olhar para essa população. Neste
primeiro conteúdo, faremos uma introdução ao tema; e aprofundaremos questões
como legislação vigente, papel do governo, e papel da sociedade civil. No
segundo abordaremos um caso prático da cidade de Florianópolis.
POPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO DE RUA: O QUE É?
A nomenclatura correta do ponto de vista legal é população em situação de rua e não
moradores de rua. Isso porque as políticas públicas mostram claramente um
objetivo em retirar as pessoas da rua, ou seja, elas estão temporariamente
nesta situação (ou ao menos deveriam). De acordo com o Decreto nº 7053 de 2009, que instituiu a Política Nacional para a
População em Situação de Rua, “considera-se população em situação de rua o
grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os
vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente,
bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia
provisória”.
QUEM ESTÁ
NAS RUAS? QUANTOS SÃO?
O universo da população em situação de rua é
heterogêneo, não cabendo generalizações. Ainda assim é possível perceber alguns
padrões, como: i) o gênero predominante é o masculino; ii) a cor da pele não-branca predomina; iii) a maioria é analfabeto ou completou apenas o
ensino fundamental; iv) grande parte está solteiro(a) ou divorciado(a); v) a
grande maioria vive de trabalhos pontuais (bicos) ou esmola e sua renda mensal
não passa de meio salário mínimo. Mesmo não representando um padrão, vale
comentar que existem diversos imigrantes em situação de rua espalhados pelo
Brasil. A razão principal disto é a vinda em busca de trabalho e melhores
condições de vida que acabam sendo frustradas.
Outro ponto importante - que costuma ser um
preconceito de muitos – é que poucas pessoas em situação de rua têm
antecedentes criminais. Isto está longe de ser um padrão. Sobre a quantidade de
pessoas em situação de rua, não há um número unificado no Brasil. Os
locais que produzem esse levantamento populacional por meio de órgãos oficiais
às vezes não condizem com números levantados por outras organizações, como as
da sociedade civil ou pesquisadores autônomos. Em Curitiba, por exemplo, têm-se
registros de 1,7 mil pessoas em situação de rua, embora outras pesquisas já
tenham estimado mais de 10 mil. Em Florianópolis, o número estimado ultrapassa 450 pessoas nessa situação, baseado em informações do Centro POP.
Já em São Paulo este número sobe para a casa dos 15 mil.
MOTIVOS PARA
IREM PRA RUA
De fato, parte dos preconceitos que temos se confirmam,
mas não é por isso que devemos generalizar. Notícias na mídia e artigos
científicos mostram diversos motivos que já estão em nossas mentes, como:
alcoolismo, drogas e condições financeiras. Contudo, há motivos como doenças
mentais, ausência da família, separação conjugal, expectativa frustrada de
trabalho em outra cidade e, até mesmo, dificuldade de se adaptar às rotinas e
regras básicas da sociedade.
A VIDA NAS
RUAS
A população em situação de rua está a todo momento se
reinventando. A aparente escassez de dinheiro e comida é suprida com a
criatividade na busca de trabalhos pontuais - os famosos bicos, nas parcerias
informais estabelecidas com donos de restaurante que dão comida, na forma como
utilizam restos de alimentos e utensílios para cozinhar seus pratos. O ser
humano é realmente muito adaptável e essa população nos permite observar isso
bem, sobretudo quando se trata das regras das ruas. Não estão escritas, não há
fiscalização, ninguém assina nada e todos respeitam as regras. Os recém-chegados,
por exemplo, muitas vezes acompanham alguém mais experiente por algum tempo
para que aprenda todas essas práticas da vida nas ruas. Portanto, fica a
impressão de que a dificuldade em estar nas ruas está menos na falta de comida,
segurança ou dinheiro, mas sim no preconceito, frio e pouco acesso aos serviços
básicos de saúde.
O PAPEL DO
GOVERNO
A relação do governo com a causa da
população em situação de rua sempre existiu, dado que sempre foi “função
governamental” acolher e assistir as populações à margem da sociedade, além de
um dever intrínseco de garantir a segurança e zelar pela ordem social.
Entretanto, essa relação de assistência à população em situação de rua veio se
consolidar como uma obrigação legal apenas a partir da vigência da Constituição
Federal de 1988.
A CF de 1988 prevê como fundamentos, em
seu artigo 1º, a Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, coloca
como princípios e objetivos a erradicação da pobreza e da marginalização e
redução das desigualdades sociais e regionais, o bem de todos e a prevalência
dos direitos humanos. Olhando para a população em situação de rua, não é
difícil perceber que esta se encaixa perfeitamente nas obrigações do Estado.
Para adequar-se à Constituição, o
governo e demais organizações criaram, ao longo das últimas décadas, diversos
mecanismos legais, a fim de atender às demandas dessa população. Em 2004, é
promulgada a Política Nacional de Assistência Social, fruto de construção
coletiva e ampliada, a qual dá início ao surgimento de uma série mecanismos e
outras políticas descentralizadas, preocupadas com a assistência social como um
todo, incluindo a população em situação de rua.
Em 2005, é feito o I Encontro Nacional
sobre População em Situação de Rua, o primeiro espaço de discussão oficial
desta realidade. Em 2008, é apresentado o resultado da primeira Pesquisa Nacional da População em Situação
de Rua. Já em 2009 é criada a Política Nacional para a População em
Situação de Rua.
A política nacional estabelece os
princípios e diretrizes de trabalho a serem aplicados pelos demais entes da
federação ao atuarem junto à esta população. O artigo 2º da política aborda que
esta será implementada de forma descentralizada e articulada entre a União e os
demais entes federativos que a ela aderirem por meio de instrumento próprio.
Suas diretrizes são: a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos,
sociais, culturais e ambientais; responsabilidade do poder público pela sua
elaboração e financiamento; integração dos esforços do poder público e da
sociedade civil para sua execução; entre outras. Com a política, fica
assegurado, pelo menos no papel, o dever de atuação de estados e municípios
nesta causa. Nota-se que seus princípios, diretrizes e objetivos propõem como
solução à problemática da população em situação de rua, a assistência, o
acolhimento e o fim da situação de rua para os cidadãos que nela se encontram.
Em Florianópolis, antes mesmo da
assinatura da política nacional, a Lei Orgânica de Assistência Social já previa
a atuação governamental com esta população. Dentro do arcabouço de serviços de
responsabilidade da Secretaria de Assistência Social estão: Casas de
acolhimento, Centro POP, Abordagem de rua, Assistência Psicossocial, entre
outros.
Em atendimento à política nacional foi
instituída em dezembro de 2011 a Política Municipal de Atendimento à
População em Situação de Rua. Esta
política tem por objetivo garantir os padrões éticos de dignidade e
não-violência na concretização de necessidades humanas e dos direitos de
cidadania à população em situação de rua, em conformidade com a Constituição
Federal, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a Política Nacional de
Assistência Social (PNAS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Ela
prevê, ainda, ao longo de seu texto: A Rede de serviços e programas públicos de
assistência; Os Princípios para garantia de direitos; e As Medidas para
acolhimento e assistência à população em situação de rua.
A partir de conversas com voluntários
que trabalham com a causa, tem-se a percepção de que a atuação governamental
através destas políticas é muito fraca, sendo que os serviços disponibilizados
à população em situação de rua continuam os mesmos que já previam as leis
voltadas à assistência social como um todo. Ao analisar as leis, pode-se notar
que estas possuem como foco a assistência social com o objetivo de erradicar a
situação de rua nos municípios. Segundo especialistas da área, há uma
negatividade muito grande, além de muitos pré-conceitos envolvendo esta
população, vista por outros cidadãos como uma ameaça à segurança pública.
A partir dos conteúdos disponibilizados
pelo Movimento Nacional da População de Rua, formado pelos próprios moradores e sociedade civil,
percebe-se um contraponto ao arcabouço legal. A demanda mais forte trazida pela
população em situação de rua é simplesmente a busca pelos direitos humanos:
alimentar-se, tomar banho, ser visto e tratado com respeito, e ter o direito de
estar na rua.
INICIATIVAS
QUE DÃO CERTO E O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL
Com o objetivo de prover o mínimo necessário para uma vida digna nas
ruas, diversos atores vêm se organizando e promovendo trabalhos e ações com a
população em situação de rua. Dentre estes atores, ganham um papel de destaque
as organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e iniciativas
governamentais, as quais podem ser encontradas em grande parte do território
nacional, e também internacionais, e têm atuado em diversos eixos que envolvem
a temática, desde a alimentação diária e à doação de roupas, até o acolhimento
em casas provisórias.
Há também cidadãos que individualmente iniciam uma ação,
o empresário Fernando Barcelos, por exemplo, criou o projeto Geladeira Solidária. A ideia é contribuir com a alimentação dos moradores
de rua de um bairro de Goiânia, com alimentos que muitas vezes iriam para o
lixo. Qualquer pessoa pode colocar os alimentos na geladeira, é preciso apenas
seguir algumas regras de conservação e tipos de alimentos a serem doados.
Já a
empreendedora Doniece Sandoval, que mora em San Francisco (EUA), teve a ideia
de criar um ônibus com chuveiros, que fica rodando pela cidade, para que
diversos moradores de rua possam tomar banho, é o projeto Lava
Mae. Em Curitiba (PR), uma iniciativa do poder público deu aos moradores de rua dois
guarda-volumes para que estes pudessem guardar seus pertences. Para utilizar o
guarda-volumes, os moradores precisam fazer um cadastro em qualquer unidade de
atendimento ao morador de rua da Fundação de Ação Social, o quadro de
funcionários que cuida dos espaços é composto por ex-moradores de rua.
A
Fundação de Ação Social de Curitiba, vinculada ao poder público municipal,
apresentou recentemente outra iniciativa bastante interessante. Um estudo muito completo acerca da população em situação de rua de Curitiba,
extraindo perfil do morador, características geográficas, além de retratar a
relação do morador com sua família. Esta pesquisa mostra, por exemplo, que a
grande maioria da população de rua de Curitiba é composta por homens, e existe
uma grande relação entre situação de rua com álcool, drogas, e conflitos
familiares. Além disso, a pobreza e os baixos níveis de escolaridade são
dominantes, e a maioria possui familiares vivendo na própria cidade ou na
região metropolitana de Curitiba.
Além
destes, outros casos mostrando o importante papel exercido pela sociedade civil
junto a essa causa podem ser encontrados em grande quantidade na internet. O
interessante aqui é observarmos que há uma diferença relevante entre aquilo que
é previsto pela legislação e aquilo que é colocado em prática pela sociedade
civil, e até mesmo pelo governo. Atualmente, os serviços oferecidos em maior
quantidade por estes atores estão voltados à alimentação e moradia provisória,
além do acompanhamento por assistentes sociais. Ainda que haja uma intenção
legal de retirar a pessoa da situação de rua, os serviços apenas conseguem
prover um mínimo necessário para a sobrevivência desta pessoa. Muitas vezes por
questões de escassez de recursos, a sociedade civil não consegue fazer mais,
além disso, vários mecanismos públicos já se mostraram ineficientes para tal
objetivo.
TIRAR AS
PESSOAS DA RUA É A MELHOR SOLUÇÃO?
Bom, há quem diga que os moradores de
rua sempre vão existir. Sendo assim, será que é válido focalizar esforços para
retirar tais pessoas da rua ou devemos compreender que o caminho é dar
dignidade a elas provendo serviços básicos mesmo que queiram passar suas vidas
nas ruas? Há uma necessidade emergente para se aprofundar o debate sobre as
políticas públicas voltadas à população em situação de rua. Como apontado por
Andrade, Costa e Marquetti (2014), as políticas públicas estão focalizadas na
retirada das pessoas das ruas, o que não promove iniciativas pessoais e
coletivas de transformação, mostrando-se como políticas impositivas, pois são
pautadas pelo disciplinamento do comportamento social. Os mesmos autores dizem,
citando Justo (2005), que morar nas ruas dá um novo sentido ao uso do espaço público,
onde atos privados tornam-se públicos e o público, entendido como o espaço
coletivo de circulação, torna-se espaço de morar. Portanto, a presença do
morador de rua provoca um impacto, porque torna público seu mundo privado e
torna privado o espaço público. Não temos essa resposta mas deixamos a pergunta
como reflexão para os leitores.
QUER SABER
MAIS?
Sugerimos a leitura de alguns artigos científicos que tratam do tema e
nos ajudaram a entender melhor o assunto:
*Artigo
escrito em Novembro de 2016 por Gabriel Marmentini, Luiza Stein e Willian
Narzetti para a disciplina Governança e Redes de Coprodução do Bem Público,
ministrada pela Professora Paula Chies Schommer.
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