Em contextos democráticos, o poder deve emanar do povo. Os governantes têm o dever de prestar contas de suas ações e omissões, submetendo-se a procedimentos de responsabilização. Esse processo, encadeado por responsabilidade, transparência e responsabilização, é denominado accountability (Campos, 1990; Pinho e Sacramento, 2009).
Os questionamentos de Anna Maria Campos, em texto sobre o tema publicado em 1990, contribuem para esclarecer a relação entre poder e accountability nas democracias:
[...] de quem emana o poder delegado ao Estado? Que valores guiam o governo democrático?
Daí decorreu que a accountability começou a ser entendida como questão de democracia. Quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accountability. E a accountability governamental tende a acompanhar o avanço de valores democráticos, tais como igualdade, dignidade humana, participação, representatividade (Campos, 1999, p. 4).
Os cientistas políticos Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro, em 2005, propuseram um modelo teórico de accountability que transparece a correlação direta com o conceito de democracia. Segundo esses autores, a democracia possui três princípios orientadores: (a) soberania da vontade popular; (b) dever dos governantes de prestarem contas ao povo; e (c) Estado regido por regras. Desses princípios, nascem as formas de accountability: (a) processo eleitoral; (b) controle institucional durante os mandatos; e (c) regras estatais intertemporais, esquematizados na Figura 1:
Figura 1 - Princípios democráticos e formas de accountability
Elaborado pela autora, com base em Abrucio e Loureiro (2005, p. 81-2)
De acordo com esses autores, a consecução das formas de accountability depende, ainda, de instrumentos específicos e de um contexto ambiental adequado. Na Figura 2, apresenta-se um modelo representativo da teoria, elaborado pela autora, com a utilização de fontes complementares de pesquisa.
Figura 2: Representação de sistema de accountability democrática
No Brasil, em um contexto de importante crise política e fiscal, o Governo Federal propõe uma agenda de reformas estruturais, justificando a necessidade urgente de recuperação econômica.
A Reforma da Previdência compõe o pacote de reformas estruturais sugerido pelo Governo em 2017. Trata-se de medida que impactará direitos de parcela significativa da população. Cabe destacar que há expressivas divergências quanto à legitimidade da reforma.
Diante da proposta governamental e das divergências provocadas, houve o acionamento de formas e instrumentos de accountability democrática, tais como a instauração da CPI da Previdência (controle parlamentar) e estudo das contas específicas por parte do Tribunal de Contas da União, TCU (controle administrativo-procedimental). Ambos mecanismos destacados na cor verde na Figura 2.
Considerando que a Reforma da Previdência impactará direitos de parcela significativa da população, seria lógico pensar que, com base na democracia, dever-se-ia aguardar os resultados da CPI e o parecer do TCU para posterior decisão do Congresso. Seria adequado, inclusive, o acionamento de instrumentos de controle social, a exemplo do referendo.
No entanto, esse não é o trâmite em curso. O Parlamento atribuiu caráter de urgência à Reforma proposta e o tema tende a ser votado antes de se obter qualquer resultado da CPI, do TCU, ou manifestação da vontade popular. No caso concreto, verifica-se o esvaziamento do sentido da accountability: aplicam-se instrumentos de controle institucional durante o mandato, no entanto estes não conseguem interferir na ação governamental.
Isso ocorre porque a efetividade da accountability democrática depende de condições ambientais mais gerais, tais como: regime democrático, transparência, independência entre Poderes e instituições, cultura e educação políticas, pluralismo de ideias e imprensa livre. Observando-se as condições ambientais apontadas na Figura na cor amarela, percebe-se que há diversas condições ambientais comprometidas, impossibilitando a efetividade dos instrumentos de accountability acionados no caso da Reforma da Previdência.
Entre os requisitos ambientais não atendidos, que obstam a accountability democrática, pode-se citar:
a) Transparência: há pouca transparência quanto às contas da Previdência;
b) Independência entre Poderes e Instituições: verifica-se claramente um jogo político entre os Poderes, que compromete o requisito de independência, com a submissão da Câmara e do Senado ao Poder Executivo;
c) Cultura/Educação Política: a cultura política brasileira demonstra fragilidade para impulsionar a efetividade dos sistemas de accountability;
d) Imprensa livre: não se verifica uma imprensa diversa, livre e isenta; mas sim frequentes manifestações favoráveis à Reforma em grandes veículos de mídia, possivelmente em razão de interesses corporativos.
Ao discorrer sobre a accountability no Brasil, Campos (1990) advoga que a maior dificuldade de tradução do termo não reside no campo linguístico, mas sim cultural, dada a fragilidade democrática nacional. José Antonio Pinho e Ana Rita Sacramento ponderavam, em 2009, que o país encontrava-se mais próximo da tradução do termo do que quando Campos se defrontou com a questão, em 1990; no entanto, “[...] ainda muito longe de construir uma verdadeira cultura de accountability” (p. 1365).
Diante do exposto, infere-se que, enquanto a democracia e a accountability não forem, de fato, incorporadas à cultura nacional, o povo brasileiro permanecerá distante do efetivo exercício do poder, como havia dito Rousseau sobre o povo inglês: “o povo inglês só é soberano no momento da votação; no dia seguinte passa a ser escravo” (citado por Abrucio e Loureiro, 2005, p. 82). A análise do contexto da Reforma da Previdência permite a validação da inferência.
REFERÊNCIAS
ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability. In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier; Campus, 2005 (p.75-102).
CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, fev./abr. 1990. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9049. Acesso em: 10 mai. 2017.
PINHO, J.A.G.; SACRAMENTO, A.R.S. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista da Administração Pública, 43 (6): 1343-68, nov./dez. 2009. Disponível em:<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6898>. Acesso em: 25 fev. 2017.
* Texto elaborado por Ana Beatriz Senna, em maio de 2017, na disciplina Sistemas de Accountability, do curso de Administração Pública da Udesc Esag, ministrada pela professora Paula Chies Schommer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário