Por Maria Clara Ames e Rogério Simões*
Os serviços públicos em situações de
emergência representam um grande desafio, mas também uma oportunidade para a administração
pública. Inundações, incêndios ou acidentes requerem ações articuladas e
respostas rápidas para salvamento e socorro às vítimas, bem como a apropriada alocação
de recursos e gestão de pessoas para a restauração de uma certa normalidade. Isso
ilustra a complexidade e a responsabilidade dos grupos envolvidos e pode ser uma
oportunidade para o cidadão participar do enfrentamento do problema, exercendo
sua solidariedade e contribuindo para a resiliência comunitária.
Essas redes de atores que coproduzem o
serviço público em situações de emergência são o tema que esse texto se propõe
a analisar. As três experiências aqui discutidas envolvem a articulação do
serviço de bombeiros com a participação de voluntários. Esses agentes cooperam,
em maior ou menor grau, no planejamento e execução de ações voltadas para o
combate de incêndios, enchentes, inundações e serviços de emergências em geral.
A primeira experiência é o caso do Corpo
de Bombeiros Militares de Santa Catarina (CBMSC) que, desde 1996, conta com voluntários
treinados e capacitados atuando junto a eles nos seus serviços. Esse grupo é
conhecido como bombeiros comunitários e sua entrada no CBMSC foi objeto de
estudo de Guideverson Heisler (2011). O segundo caso de coprodução ilustra uma
tentativa de engajar a população do condado de San Diego, no Sul da Califórnia,
por meio da Rede de Recuperação de Incêndio de San Diego (San
Diego Fire Recovery Network, SDFRN), no problema de queimadas
na vegetação nativa do chaparral, conhecido como Cedar Fire (GOLDSTEIN, 2008).
O último caso retrata um a coprodução entre a administração pública de Queensland,
nordeste da Austrália, juntamente com um voluntariado participativo em
situações de emergência decorrentes de ciclones e enchentes na região,
conhecido como Mud Armies, ou
“exército de lama” (RAFTER, 2013). Estas três iniciativas de participação
ilustram oportunidades de coprodução, algumas de fato delegando poder à
população local em várias etapas do processo, outras apenas na entrega de
soluções. Nessa interação, também se verificam resistências e conflitos.
O CBMSC, desde
2003, passou de 35 para 90 municípios atendidos. Essa expansão deu-se, em
parte, graças à inclusão de voluntários na forma de bombeiros comunitários, que
são selecionados e capacitados com vistas a uma boa disponibilização de seus
serviços. A aceitação dos bombeiros
comunitários por parte dos bombeiros militares sofreu certa resistência no
início. Entretanto, com o passar do tempo, os próprios bombeiros militares
começaram a ver os bombeiros comunitários como uma solução para a falta de
contingente e para uma melhor prestação do serviço junto à comunidade.
Entretanto, alguns problemas ainda podem ser identificados, como: a formação
dos instrutores, os voluntários com graus de instrução muito diferenciados;
problemas com a inserção de mulheres como voluntárias, pois na cultura militar
anterior as mulheres não faziam parte dos bombeiros e estes não sabiam lidar
com problemas como relacionamentos que surgiram dentro da corporação; além da
hierarquia e da disciplina militar que divergia em muito do que os voluntários
eram acostumados.
Já a SDFRN teve
início com o Cedar Fire, o maior
incêndio florestal da Califórnia, que devastou 273.246 acres de terra, no ano
de 2003. A vegetação nativa do chaparral, altamente inflamável, somada a uma
sequência de ventos fortes, criam as condições ambientais para as queimadas,
recorrentes na região de San Diego, no sudoeste da Califórnia. A SDFRN foi
formada por ativistas da região, consultores ambientais e gestores
ambientalmente engajados. Eles reconheciam os limites do controle humano sobre
as dinâmicas do ecossistema. Assim, sua proposta contemplava: (1) reconstruir a
identidade do povo de San Diego, com iniciativas de voluntariado e para o
desenvolvimento da cidadania; (2) promover o abrigo local e desenvolver a
capacidade de proteger suas vidas e lares; (3) sugerir aos proprietários de terra o cultivo de vegetação nativa
resistente ao fogo, para uma reforma
ecológica e social; (4) construção de casas resistentes ao fogo, e no design de
uma matriz regional de áreas urbanas separadas das áreas de preservação. No
entanto, seis meses após o grande incêndio, a participação na SDFRN, que foi
intensa no início, começou a diminuir. A resposta do Estado às reclamações da
população foi que os incêndios nesta região eram previsíveis e possíveis de
controlar, enfraquecendo os argumentos da SDFRN. Como consequência, as agências
governamentais mudaram a legislação e fizeram
grandes investimentos na infraestrutura para combate aos incêndios.
Em outra parte do globo, entre
novembro de 2010 e abril de 2011, ciclones e inundações causaram imensa
destruição e várias vidas se perderam em meio às enchentes que avassalaram as
cidades da região de Queensland, na Austrália. Estes eventos proporcionaram uma
oportunidade para o Departamento de Segurança Comunitária de Queensland,
juntamente com o governo, repensar a forma como se relacionavam com o público,
construir a resiliência nas comunidades e mobilizar os voluntários. Como
resposta a esse problema, a gestão de desastres se focou na resiliência e
responsabilidade compartilhada (coprodução) por todos os setores da comunidade
e do governo para prevenir e mitigar estes desastres. Uma das suas prioridades
é prestar apoio contínuo ao recrutamento, à manutenção, à formação, à compra de
equipamento e ao incentivo do apoio não remunerado, buscando facilitar o
voluntariado. O Serviço de Emergência do Estado (SES) é uma organização voluntária
e é a organização normalmente responsável por ser o primeiro no terreno quando
ocorre uma catástrofe. O Serviço de Bombeiros Rural, que desempenha
o papel de primeiros socorristas em eventos de desastre, é também uma
organização predominantemente voluntária. A iniciativa enfrentou alguns
problemas, como os desafios para atrair, apoiar e reter voluntários: tempo,
treinamento, custo, reconhecimento e o compromisso dos voluntários. Além disso,
atualmente observa-se que muitos voluntários estão envelhecendo, e alguns jovens
usam o voluntariado como um caminho para o emprego remunerado, de modo que eles
permanecem em seus papéis apenas por curtos períodos de tempo.
A reflexão sobre as formas de coprodução
nos três casos possibilita reconhecer os diferentes meios e os resultados no
crescimento da participação da comunidade. As três iniciativas revelam
elementos característicos da coprodução, reunidos no Quadro 1.
Quadro
1 – Análise das experiências de coprodução
|
CBMSC
|
SDFRN
|
SES QUEENSLAND
|
Ideia inicial
|
Resultado
|
Participação
dos cidadãos
|
Só Execução
|
Delegação de Poder
|
Consulta
|
Delegação de Poder
|
Continuidade
e Consistência
|
Processo Contínuo
|
Processo Contínuo
|
Não alcançado
|
Processo Contínuo
|
Valores
Compartilhados
|
Top-down
|
Botton-up
|
Entre interessados da comunidade
|
Entre governo e comunidade
|
Responsabilidade
Compartilhada pelos cidadãos – no design e/ou na entrega
|
Entrega
|
Entrega e Design
|
Não alcançado
|
Entrega e Design
|
Conflitos
e Resistências
|
Sim
|
Sim
|
Sim
|
Não
|
Resiliência
na Comunidade
|
Sim
|
Sim
|
Não
|
Sim
|
Fonte:
elaborado pelos autores.
Analisando as experiências segundo os
níveis de participação discutidos por Arnstein (2002), o caso de Queensland foi
a experiência de coprodução mais exitosa, pois além de delegar poder à
comunidade, tem consistência e é uma oportunidade para o diálogo e o
compartilhamento de valores. Os conflitos ou resistência enfrentados
inicialmente, tais como a burocracia, foram ajustados gradativamente,
possibilitando o atendimento das emergências, a manutenção das iniciativas e a
resiliência da comunidade da região.
No caso dos CBMSC, conseguiu-se que: os
bombeiros comunitários participassem apenas na entrega (não no design) dos
serviços de forma consistente e contínua desde 1996; os valores compartilhados
são predominantemente os da corporação militar; a responsabilidade na entrega é
compartilhada; e, embora tenha havido resistências iniciais e conflitos, a iniciativa
tem contribuído para a resiliência na comunidade.
A experiência do SDFRN tinha um
potencial muito grande em termos de engajamento da população, no intuito de
planejar ações que contribuiriam na resiliência e responsabilidade dos
cidadãos, bem como na consciência ambiental dos envolvidos. No entanto, a
iniciativa foi suprimida pelas agências governamentais e, seis meses após a
contenção do incêndio, começou a perder sua capacidade de articulação. O SDFRN conseguiu
promover o diálogo e a colaboração entre os participantes, mas não foi
reconhecida pelo poder público, e consequentemente, o design e a execução
planejados foram absorvidos por um programa distinto estabelecido pelos agentes
governamentais.
Conjuntamente, essas experiências ilustram
como a delegação de poder pode estar associada às várias etapas da coprodução e
ao compartilhamento de responsabilidades, bem como contribuir para a
resiliência local. Além das etapas, revelam que a
comunicação e preparação dos envolvidos pode ajudar a evitar conflitos e
resistências, bem como ponderar a burocracia, que às vezes limita as ações,
especialmente na condução de situações de emergências, enchentes e incêndios. O
caso de San Diego mostra o desafio em se alcançar consistência e continuidade. Apesar
de sua curta duração, representou uma iniciativa com grande potencial para a
resiliência e distribuição de poder à comunidade. Todavia, sua trajetória foi
interrompida, entre outras razões, porque a proposta não foi adotada pelos
agentes públicos locais. Em busca de uma administração pública mais responsiva,
futuras reflexões podem abordar de que forma iniciativas como essa podem se
manter em atividade em longo prazo. Ou ainda, como criar condições para que a
participação cidadã ocorra no design, no planejamento e na entrega dos serviços.
Referências
ARNSTEIN. Sherry R. Uma escada da participação
cidadã. Participe. Revista da
Associação Brasileira para Promoção da Participação. Ano 2, N. 2, p. 4-13. Jan. 2002.
GOLDSTEIN, Bruce
Evan. Skunkworks in the embers of the Cedar Fire: Enhancing resilience in the
aftermath of disaster. Human Ecology, 36(1), 15-28, 2008. Disponível em:
<https://link.springer.com/article/10.1007/s10745-007-9133-6>
HEISLER, Guideverson de Lourenço. Novo serviço público: uma análise da
participação de voluntários em organizações estatais a partir do estudo do caso
do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina. Dissertação (mestrado),
Universidade do Sul de Santa Catarina, Pós-graduação em Administração.
Orientação: Profa. Dra. Gabriela Gonçalves Silveira Fiates, 2011. 184 f. Disponível
em: <file:///C:/Users/Acer/Downloads/CCEM_2011_Heisler%20(1).pdf>
RAFTER, Fiona. Volunteers
as agentes of co-production: “Mud armies” in emergency services. In: Lindquist,
E. A., Vicent, S, Wanna, J. (Eds.) Putting citizens first: Engagement in
policy and service delivery for the 21st century. Canberra: ANU
E-Press, 2013. Disponível em: < http://press-files.anu.edu.au/downloads/press/p250381/pdf/ch20.pdf>
* Texto elaborado por Maria
Clara Ames e Rogério Simões, no âmbito da disciplina Coprodução do Bem Público,
do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de
Santa Catarina, Udesc Esag.