Por André Souza Noronha Nepomuceno, Raphael Ewaldo de Souza e Vitor Bruno*
Muito se fala sobre a importância do saneamento para a
qualidade de vida de uma sociedade. De acordo com dados do Instituto Trata
Brasil/CEBDS (2014), a falta de saneamento básico é um transtorno em vários
locais do Brasil e está relacionada diretamente com o aumento de doenças. Se
toda a população brasileira tivesse acesso à coleta e tratamento de esgoto, estima-se que haveria uma redução, em termos absolutos, de mais de 70 mil internações por
ano, associadas a infecções gastrintestinais; sendo que, dessa redução, mais da
metade seria na região Nordeste. A restrição de água potável, o
acúmulo de lixo e a destinação prematura dos efluentes líquidos favorecem o
surgimento e o desenvolvimento de vetores e agentes que podem ocasionar doenças,
como por exemplo, diarreia, verminoses, cólera, leptospirose e hepatite.
Saneamento
é o conjunto de medidas que tem como objetivo resguardar ou mudar a situação
ambiental com o interesse de reduzir ou eliminar doenças, promovendo saúde e
melhoria na qualidade de vida da população. Em nosso país, o saneamento básico é
um direito garantido pela Constituição Federal, definido pela Lei
nº.11.445/2007 como o conjunto dos serviços de: abastecimento de água,
esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos
sólidos e de águas pluviais. Mesmo compreendendo que o conceito de saneamento abrange os serviços supracitados, o senso comum entende que o
mesmo se resume ao acesso à água potável e à coleta e tratamento de esgoto
(Instituto Trata Brasil, 2014).
Praticamente
17% da população mundial, em especial pessoas dos países em desenvolvimento,
não possui acesso à quantidade mínima de água potável estabelecida pelas
organizações competentes, cerca de 5 litros de água por dia; e 45% dos países
do chamado terceiro mundo não possui acesso ao saneamento básico (ABES, 2016). No
Brasil, a condição geral do saneamento, tanto no campo quanto nas cidades,
continua ruim para as populações de baixa renda, apesar da evolução nos últimos
40 anos. Referente à participação da sociedade civil organizada, há uma garantia
da participação de usuários e da sociedade civil em todos os plenários
formalmente constituídos, desde o Conselho Nacional de Recursos Hídricos até os
Comitês de Bacia Hidrográfica. Essa é uma forma de dar legitimidade às decisões
e também uma maneira de ampliar as chances de implantação das decisões tomadas
(Porto e Porto, 2008).
Neste texto, buscamos comparar distintas experiências associadas ao saneamento
básico no Brasil, visando compreender se e de que maneira a coprodução de bens e serviços públicos ocorre
nesta área, identificando pontos de convergência entre os casos analisados; sendo a coprodução entendida conforme a definição sugerida por Ostrom (1996), como o
processo em que pessoas de diferentes organizações destinam esforços para a
produção de bens e serviços que geram benefícios para o coletivo.
Os Comitês de Bacias Hidrográficas
Os comitês de Bacias Hidrográficas
(CBHs) são organismos colegiados, integrantes do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos e começaram ser constituídos no Brasil a
partir de 1988. A diversidade de atores que compõem os Comitês estabelece uma
visão democrática, que compreende diferentes perspectivas sobre os assuntos
abordados, contribuindo para a representatividade da sociedade nas decisões
relacionados à bacia hidrográfica. Os membros do colegiado são escolhidos entre
si, quer sejam eles dos setores usuários de água, da sociedade civil organizada
ou entidades do governo. Suas principais responsabilidades são: aprovar o Plano
de Recursos Hídricos da Bacia; arbitrar conflitos pelo uso da água, em primeira
instância; criar mecanismos e sugerir valores da cobrança pelo uso da água,
além de implantar políticas de gestão ambiental no âmbito da bacia
hidrográfica, como por exemplo, o Plano de Bacia.
Essencialmente,
um comitê de bacia trabalha em sistema de redes e em coprodução. No âmbito de
redes, sua própria estrutura favorece esse conceito, agregando diversos atores
da sociedade em prol da gestão ambiental, do uso sustentável dos recursos
hídricos e da sustentabilidade econômica. São agentes da sociedade civil, governos, indústrias e usuários de água que podem participar do comitê, fazendo parte da
atividades e dando voz a diversos setores, tais como abastecimento público,
energia, agricultura, pecuária e industrial.
O Plano define os usos dos recursos hídricos dentro de determinada
bacia, operando como um plano diretor da água. A outorga do direito de uso da
água depende, essencialmente, de um plano individual para cada bacia,
considerando suas peculiaridades econômicas, geográficas e sociais. Na prática,
baseado nas características físicas e econômicas da bacia, são definidos os principais
usos com o intuito de preservar o recurso natural, priorizando atividades
consideradas mais importantes e que mais demandam os recursos. Os Comitês foram
oficializados pela Lei nº
9.433, de 8 de janeiro de 1997.
Existem
diferentes exemplos da ocorrência de coprodução associados aos Comitês de
Bacia. A própria definição das políticas ambientais compreende o envolvimento
de diferentes atores, tanto no processo de elaboração das políticas como na implantação, em maior ou menor grau. Programas de pagamentos por serviços
ambientais - PSA -, muito em evidência nos últimos anos, são essencialmente
mecanismos de coprodução, uma vez que sua implementação e eficácia dependem da
participação de proprietários rurais e de outros agentes usuários de água.
Outros projetos podem se beneficiar da coprodução, por exemplo, a educação
ambiental através de multiplicadores, que podem ser estudantes, associações de
moradores e escolas.
Coprodução em casos de saneamento
No Brasil, é possível observar em
diferentes contextos e situações, arranjos de comunidades, organizações e
governos atuando em conjunto para a concepção, desenvolvimento e execução de
políticas e serviços públicos na área de saneamento. Destacamos três casos que trazem consigo distintos
contextos e arranjos de atores. Um, envolvendo a provisão de um direito básico -
água - em uma região totalmente escassa deste bem; outro, atuando na conservação de mananciais visando a manutenção da provisão deste
recurso natural; e, por último, uma situação em que o planejamento e a execução do sistema de esgotamento de um condomínio foram realizados por meio de um arranjo típico de coprodução de bens e serviços públicos, por envolver governo, usuários e diferentes
atores da sociedade no planejamento, desenvolvimento e manutenção do sistema.
Figura 1: Logomarca do Consórcio IBERÊ
Fonte: website da iniciativa
O Consórcio Iberê surgiu de uma iniciativa da sociedade civil com o intuito de aplicar uma gestão por bacias hidrográficas no oeste de Santa Catarina. O objetivo do Consórcio é aplicar um gerenciamento ambiental e social integrando municípios pertencentes a uma mesma bacia. Em qualquer bacia, os impactos das ações se refletem em toda a sua extensão, principalmente em se tratando de recursos hídricos. É inócuo tratar essa questão isoladamente por municípios. Nesse caso, são sete os municípios integrantes e cada prefeitura disponibiliza um técnico como coordenador municipal do Consórcio, além da presença da sociedade civil e outras organizações. O presidente do Consórcio é sempre um prefeito de um dos municípios.
Desde sua fundação, em 1999, o Consórcio Iberê já desenvolveu diversos projetos na área ambiental. O Projeto de Preservação, Conservação, Recuperação e Manutenção das Matas Ciliares é um caso de sucesso quanto à governança em rede e o modelo de coprodução. Os resultados mostram que quando há governança, participação e a sociedade civil é acionada para a solução de problemas, o resultado é imediato.
A
coprodução acontece, por exemplo, com a participação de proprietários rurais
que contribuem com seu trabalho na recuperação da mata ciliar existente em suas
propriedades. Além disso, eles são multiplicadores de ideias; identificam,
sensibilizam e trazem novos produtores para o projeto. Esse projeto conta com a
participação financeira da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN)
para: obtenção de materiais de isolamento das áreas a serem recuperadas;
pagamento de pessoal (no caso, dois técnicos contratados pelo consórcio);
material de divulgação e promoção de eventos educacionais e; compras de equipamentos, como computadores e material de expediente.
Figura 2: Logomarca da iniciativa ASA
Fonte: website do programa ASA
O programa desenvolvido pela Articulação Semiárido Brasileiro - ASA - no início dos anos 2000, visa a atender uma necessidade básica da população que vive na região: água para beber. Muito mais do que apenas água, suprir esta necessidade básica reflete diretamente no desenvolvimento de toda uma comunidade. Neste caso, por exemplo, possibilitou inúmeros avanços como: aumento da frequência escolar; diminuição de doenças e diminuição da sobrecarga de trabalho das mulheres, que antes precisavam caminhar quilômetros para obter um balde de água.
Figura 3: Cisterna do P1MC
Fonte: website do programa ASA
Como
coloca o atual site do Programa, a experiência do Programa 1 Milhão de
Cisternas - P1MC - demonstra um novo caminho para a construção de políticas
públicas; um movimento que nasce com a mobilização da sociedade civil para
propor uma política efetiva para o contexto onde vivem, e que se transforma em
uma política de governo obtendo recursos previstos no Orçamento Geral da União.
A
coprodução se dá, desde sua origem, por meio da tomada de decisão “de baixo
para cima”, como mostra o vídeo-case do Programa, pois as comunidades decidem o município, doravante a localidade e, por último, a família que será beneficiada; há todo um consenso em
planejar sistematicamente a implantação das cisternas para suprir o
fornecimento para o maior número possível de famílias - uma vez que as famílias
compartilham da mesma cisterna até que cada uma tenha a sua.
Da
meta original, que corresponde a um milhão de cisternas instaladas, já foram
implementadas 588 mil cisternas rurais -
até o final de 2016.
Esgotamento condominial em Recife
Uma experiência brasileira emblemática foi analisada por Ostrom (1996), em artigo no qual a autora aborda dois casos para explorar a conceituação de coprodução, fazendo um paralelo entre seus pontos-chave. Destacamos o caso que se desenrolou em Recife/PE, no nordeste do Brasil. Um engenheiro chamado José Carlos de Melo, junto a um grupo de cidadãos, desenvolveu um sistema condominial inovador de esgotamento, no qual pequenas adaptações em relação a projetos tradicionais fizeram com que cada unidade predial definisse seu modelo, tendo impacto no custo inicial de implementação e os custos contínuos de manutenção. Um exemplo foi a instalação das tubulações por baixo das calçadas ao invés das tradicionais tubulações que são enterradas por baixo das vias rodoviárias. Nessa etapa, o custo foi equivalente à ¼ do custo tradicional.
Esgotamento condominial
Figura 4: Ilustração
condominial
Fonte: Google Images -
busca livre
A
coprodução ocorre no sistema condominial por envolver, além de especialistas na área, os residentes, desde o
planejamento do layout, a
manutenção e a negociação de custos. Isto promove uma cidadania ativa. Uma parte
fundamental deste programa é a ativação dos cidadãos locais a participar desde
o início, no planejamento dos seus próprios sistemas condominiais.
Os
moradores se envolveram diretamente no planejamento, na instalação e na manutenção, e o sistema, por sua vez, foi
ligado à rede de coleta do município. Fazer esse tipo de sistema funcionar de forma
eficaz a longo prazo requer mudança na atitude e rotinas operacionais dos
órgãos públicos, uma vez que exige a contribuição dos condôminos em todas as
fases do projeto.
Embora
os resultados sejam impressionantes para incentivar a coprodução em outras
partes do mundo, o caso do sistema condominial demonstra três difíceis
desafios: (i) a organização dos cidadãos e o engajamento futuro na realização
das ações que envolvem o coletivo; (ii) o bom trabalho em equipe dentro de um
órgão público; e (iii) uma coordenação eficaz entre os cidadãos e uma agência.
Implicações da coprodução no desenvolvimento de serviços
públicos
Os casos apresentados mostram diversas possibilidades e bons resultados na
coprodução de serviços públicos. Tanto no caso do Consórcio Iberê quanto no
caso da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), os resultados se mostram
expressivos e crescentes ao longo do tempo. Vale uma nota, em ambos a
iniciativa partiu da sociedade civil e os governos entraram como agentes de
apoio. Isso mostra a força que a coprodução tem de colaborar para que o Estado garanta acesso e assistência a toda a população. A dinâmica da sociedade civil se
mostrou, nesses dois casos, mais eficaz que a centralização estatal.
Embora
o campo pareça promissor para a coprodução e a gestão em rede, é inegável que há dificuldades para seu desenvolvimento de forma ampla no setor de saneamento.
Questões culturais, econômicas, burocráticas e até mesmo um entendimento mais
aberto por parte de nossos administradores ainda limitam as possibilidades.
Não é arriscado dizer que as redes são uma
tendência, quase inevitável, em certos setores da economia. A própria
inabilidade do Estado em alguns setores, o gigantismo que o obriga a realizar
cortes, além do potencial da cidadania, a dinâmica do mercado e a competitividade acabam criando
um ambiente em que o Estado não pode fugir dessa nova ordem. Cabe então à
sociedade encontrar novos caminhos e mostrar que é possível, adotando um papel
ativo no serviço público, somando esforços às instituições e evoluindo o modelo
de democracia e coprodução do bem público, transformando os modelos vigentes,
entendidos como ultrapassados, na direção de novos modelos que atendam aos anseios da sociedade.
REFERÊNCIAS
ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental. A
importância do saneamento no contexto mundial. São Paulo. 10 ago. 2010. 44 slides. Apresentação em Power-point.
Disponível em: <http://www.fenasan.com.br/arquivos/apresentacoes10/1008_15h30_dante.pdf>.
Acesso em: 12 dez. 2016Instituto Trata Brasil. Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento
Sustentável. Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento Brasileiro. São
Paulo: Instituto Trata Brasil/CEBDS; 2014. Disponível em: <http://www.tratabrasil.org.br/datafiles/uploads/estudos/expansao/BOOK-Benef%C3%ADcios%20-logos.pdf>.
Acesso em: 10 dez. 2016.
PORTO, M. F. A.; PORTO, R.L.L.. Gestão
de bacias hidrográficas. Estud. av.,
São Paulo, v. 22, n. 63, p. 43-60, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142008000200004&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 08 dez. 2016
OSTROM, Elinor. Crossing
the great divide: coproduction, synergy, and development. World Development. v.24, n.6, p.1073-1087, 1996
LINKS
http://www.tratabrasil.org.br/
http://www.ibere.org.br/
http://www.asabrasil.org.br/acoes/p1mc
* Texto elaborado por André Souza Noronha Nepomuceno, Raphael Ewaldo de Souza e Vitor Bruno, no contexto da disciplina Governança e Redes de Coprodução, do Mestrado Profissional em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag.
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